Para entrar nesse universo é preciso criatividade e uma ampla visão de mundo
Uma arte secular, que reúne a poesia, a rima, a criatividade, o improviso e um amplo conhecimento e visão de mundo. O repente, originalmente trazido pelos portugueses, tornou-se uma tradição brasileira e popularizou-se principalmente nas regiões Norte e Nordeste do país. Em seus versos, são contadas as histórias de vida do homem do campo, da seca, da roça e das tradições, tudo por meio da poesia popular.
O repente chegou ao Brasil durante a colonização e era praticado em fazendas, engenhos e senzalas como o único divertimento da época, além das festas religiosas. A prática se manteve durante séculos e, por volta de 1830, surge o cordel. As cantorias transcorreram ao longo do século XIX com muitos cantadores viajando Brasil afora e chegaram ao século XX ainda com grande força. E, em meados da década de 1950, surgem as inovações tecnológicas, como o rádio e a televisão.
“Muitos acreditavam que o cordel e o repente deixariam de existir, mas ocorreu o contrário. Os poetas passaram a tirar proveito do rádio, da televisão e, agora, da internet, divulgando seus trabalhos. O cordel e o repente têm uma grande facilidade de se adaptarem às mudanças, então eles não vão acabar”, explica Joaquim Mendes, o Joames, cordelista, professor de Literatura de Cordel e Presidente da Associação dos Violeiros e Poetas Populares do Piauí – Casa do Cantador.
Por ser uma poesia popular, o cordel e o repente devem ser de fácil compreensão, tanto por aquele que lê quanto por quem ouve. Assim, se seus versos tiverem uma linguagem rebuscada, deixam de ser poesia popular. Isso não quer dizer que o cordel ou o repente precisam ser escritos de maneira errada. “A linguagem precisa ser simples, para que todos entendam o que está sendo dito, desde aquela pessoa com maior grau de formação ao analfabeto. Esse é o grande objetivo da literatura popular, do cordel e do repente”, explica Joames.
Fazer versos sobre tantos temas requer conhecimento, estudo e dedicação do poeta, afinal, o cordel e o repente são literaturas abrangentes, exigindo que os artistas pratiquem diversos gêneros literários em suas canções. “O poeta popular tem uma capacidade desenvolvida de falar sobre qualquer assunto. São artistas versáteis e completos, que conseguem abordar inúmeros temas e gêneros, mesmo sendo pessoas modestas e com pouco conhecimento acadêmico, eles fazem isso devido à prática e ao senso de observação”, destaca o cordelista Joames.
Cordel e repente, dois filhos da mesma mãe
Muitos não sabem, mas há uma diferença entre cordel e repente. Esses dois gêneros são ramificações da poesia popular, entretanto, um aborda a poesia escrita e o outro a poesia oral. No cordel, o poeta trabalha a poesia escrita, logo, o artista possui um pouco mais de tempo para criar seus versos e rimas. Já no repente, o poeta não dispõe de tanto tempo para trabalhar seu repertório, uma vez que essa cantoria caracteriza-se pelo improviso de estrofes, ou seja, sua composição é feita no momento da apresentação.
“Por causa disso, o repente não é perfeito como o cordel, que dá para fazer revisões. O repente, quando é lançado, não tem mais conserto. O repentista tem a brilhante qualidade de pensar rápido, mas não é só isso, ele precisa seguir algumas regras de metrificação, ou seja, as sílabas presentes em um verso”, explica o cordelista Joames.
Antigamente, os temas comumente trabalhados pelos repentistas e cordelistas eram o sertão e suas características, como a seca, as catástrofes e a rotina da vida rural. Com a modernidade, as temáticas mudaram e, hoje, os artistas precisam estar atentos a tudo que acontece no mundo.
“Esses temas eram comuns porque era o que se vivia na época. Mas, com o passar do tempo, o cordel e o repente acompanharam a modernidade da comunidade. Hoje, falamos de política, das guerras, ou seja, não tem assunto que não abordamos, pois acompanhamos a evolução da vida, do mundo, dos fatos e da história”, comenta o presidente da Casa do Cantador.
Vale destacar que, no cordel e no repente, as sílabas de versificação são diferentes das sílabas gramaticais, e elas precisam ser seguidas por seus cantadores. Ao todo, são mais de 80 modalidades de versificação na poesia popular.
Você não pode dizer que é um repentista ou um cordelista se não obedecer essas regras, porque a literatura de cordel não aceita versos que não sejam rimados e metrificados. Essa métrica é responsável pelo ritmo, como se fosse uma música, já que cada estilo tem uma tonicidade diferente.
Joaquim Mendes, o Joamescordelista, professor e Presidente da Casa do Cantador
“Há três formas de acentuar o verso, mas, a mais comum entre os cantadores e cordelistas é o Verso Martelinho, onde os versos devem ter 10 sílabas, sendo que as terceiras, sextas e décimas sílabas devem ser tônicas. Então, às vezes, um cantador erra, mas é aceitável, já que é humanamente impossível exigir que ele faça tudo corretamente, e de improviso, seguindo todas essas regras”, explica.
Há algumas décadas, muitos cordelistas trabalhavam seus versos e os associavam com outra importante referência da cultura nordestina: a xilogravura. A técnica consiste em gravar uma imagem sobre o papel ou outro suporte utilizando uma matriz feita em madeira, num processo similar ao de um carimbo.
“No passado não havia fotógrafos, então os cordelistas utilizam essa técnica para ilustrar. A xilogravura começou com os poetas, que não queriam lançar seus cordéis com as folhas brancas. Então, a relação do cordel com a xilogravura durou muitos anos”, explicou o professor de Literatura de Cordel.
Versos Decassilábicos martelinos
Divisão gramatical – Le / ve / a / fé / on / de / rei / na / o / de / sen / ga / no – 13 sílabas
Divisão poética – Le / ve a / fé / on / de / rei / na o / de / sen / ga / (no) – 10 sílabas
Literatura de cordel e a nova geração
Há alguns anos, a profissão de cordelista e repentista sofreu baixas, especialmente com a popularização da internet. Costumeiramente passada de geração para geração, muitos jovens não estavam seguindo os mesmo passos dos pais, abalando essa arte milenar. Talvez, muito dessa perda se dê pela falta de conhecimento e divulgação desse trabalho tão importante para a cultura e para a história.
Em 2018, a Literatura de Cordel foi registrada como Patrimônio Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). As ações de preservação desse bem também abrangem o Repente, registrado pelo Iphan em 2021, que compartilha semelhanças com o cordel, sendo marcado pela poesia improvisada e cantada.
“Tínhamos essa grande dificuldade com a juventude, em levar e trazer a literatura para os jovens e que eles aceitassem, mas estamos mudando isso. Após o reconhecimento do cordel e do repente como patrimônio cultural brasileiro, passou-se a dar mais valor a esse tipo de poesia, que acabou sendo levada para as escolas com mais frequência e os alunos começaram a gostar. Muitas vezes, as pessoas não gostam porque não conhecem”, ressalta Joames, presidente da Casa do Cantador.
Com essa renovação no cordel e no repente, a nova geração tem a possibilidade não apenas de trabalhar com a literatura popular, mas também de ampliar o conhecimento sobre diversos assuntos. A literatura de cordel proporciona a ampliação do repertório cultural do indivíduo e sua capacidade criativa.
A prática faz com que a pessoa vá se aproximando da perfeição. Quando o aluno aprende a fazer a poesia, dando continuidade, acontece uma transformação na mente dele, pois sua capacidade cognitiva, ou seja, de entender as coisas, vai sendo ampliada.
Joaquim Mendes, o Joames, cordelista, professor e Presidente da Casa do Cantador
“Com isso, esse aluno vai ficar melhor em Português, em Literatura, ele vai ampliar seu repertório cultural, a mente aprende a pensar e a criar cada vez mais ideias. O objetivo de levar o cordel para as escolas é que os alunos desenvolvam o senso de entendimento, de compreensão, da memória e das ideias”, ressalta o professor de Literatura de Cordel e cordelista, Joames.
Fonte: Portal O Dia